“A dispersão não lhes tira a unidade, nem a inquietude a constância”
Machado de
Assis
I
falam
pelos cotovelos
se
os tivesse além dos caules.
E
se tanto atrapalhe todas das coisas
que
digam,
fingem-se
moças perdidas – perdizes! –
soltas
nos ares e viram
rosas-palavras
com
asas.
II
Escrevi
o meu penúltimo verso
como
se me despedisse do dia anterior
ao
derradeiro
e
dentro dele inteiro
a
vida toda passa em carrossel
azulmistérioflorpapelcoriscovinda:
está
visto que um dia é muita vida ainda!
III
Primeiro
foi meu pai, depois todos
os
homens
estavam
ali inscritos no papel
e
me diziam:
–
não!
IV
Mesmo
que o quisesse não seria
o
único a nascer
e
visto que se nasce todo dia,
teria,
dos anos, todas as idades.
E
tu poderias ver de trás para diante
em
frente e verso
tudo
quanto o destino atina
de
nos dar.
V
O anjo
pousou no galho fino
e
ainda alertei-o do perigo
mas,
como todos os seres divinos,
teimou
comigo sobre o que é mais certo,
dobrou
as asas,
fumou
o meu cigarro,
e
caiu ao chão profano.
VI
Virou,
mexeu e nem mais um sinal
faltava
constatar o último suspiro
quando
o vento que soprou
tornou-lhe
a vida
ainda
envolto em véus
de
nuvem, lamentando terem-lhe
furtado
o céu.
VII
Cantou,
dançou, correu entre os jardins
e,
ao fim dessa aventura
destinada,
caiu
em si cansado de ser só.
Os
restos mortais de
sua
loucura ainda fremem ao chão
como
formigas.
VIII
Quem
é que não tem olhos
que
não vejam,
ao
menos por alguns segundos,
os
raios finos de um
segredo
perdido
antes de existir o homem,
seus
ritos e seus
medos?
IX
À
noite, fecho os olhos para o sonho
mas
assim mesmo
ele
penetra fundo e planta
o
seu gérmen infecundo
no
solo infértil do meu pensamento
deixando
nele menos
do
que flores murchas:
sementes
duras como grãos
de
areia!
X
Despiu-se
de todas as peças
uma
a uma:
chapéu,
luvas, meias, calças
nua
saiu
no hall de porta afora
pela
rua, campo, dia, noite e nuvem
até
onde o deserto
a
revestia!
XI
Também
pudera
nunca
tivera de seu nem um mistério
tudo
o que possuía era claro e verdadeiro
como
as flores;
quando
nasceu-lhe aquela flor espúria
escura
como um lago
e
aparentemente traiçoeira
é
natural que
nunca
mais sorrisse.
XII
Escolheu
por si mesmo o caminho
entrou
fundo no desfiladeiro
e
viu naquele gesto a própria queda
mas
nada o demoveu
do
seu intento
tanto
que chegou ao topo
e
como um filho de Empédocles
lançou-se
na gastura
do
infinito.
XIII
Conheci-a
assim mesmo:
sem
linhas nem contornos.
Quando
tencionei aprisionar-lhe os traços,
fui
traído por um leve fio.
–
O retrato final não era ela!
E,
ao tentar consertá-lo, perdi-a
por
inteiro.
XIV
O
dia passou intenso
como
frutos amadurecem no verão
e
como da semente ao germinar
transcorresse
um segundo;
O
final da tarde ainda mais lento
trouxe
o sonho de uma vida plena,
enquanto
a lua
–
terrena criatura – atravessou
redonda
os
arvoredos!
XV
Eu
nem vi a luz quando apagou
e
nem a sombra ao sol nascer,
vi
sim seus olhos entre os lençóis
que
despertavam como girassóis
e
ao seu redor
o
mundo que soía
em
sua órbita sem fim.
XVI
Havia
séculos que já se rendera
aos
apelos insensatos da verdade
e
entre as sombras de todos
os
mistérios se escondera;
mas
hoje ao acordar sentiu as
dores
de um parto triste
envolto
em dúvidas imensas
qual
montanhas cobrindo a luz do sol
do
pensamento.
XVII
Esse
era seu medo:
entrar
de casa adentro e ver-se
–
só! –
sem
filhos, sombras nem esposa
e
muito menos as paredes frias,
que
escondiam suas dores
cruas.
XVIII
E
a alma era toda corpo
exposta
em carne viva aos passantes
tanto
é que nem mesmo
vestia
qualquer das vestes
que
se impinge
aos
vivos...
XIX
Se
tudo isso estivesse além de si
ter-me-ia
entregado às
suas
prédicas.
Mas
que fazer das dúvidas
nascidas
entre o capim
E
as roseiras vivas?
XX
Era
uma diva e sua voz
um
canto triste
dizendo
aos homens que esta vida
tem
fim, tem dores, e tem fome
de
alçar-se acima
de
toda matéria!
XXI
Nada...
e a troco de nada
entrou
a jogar a sua vida
aos
quatro cantos
pela
estrada
como
se tudo fosse apenas
fichas
trocadas nas roletas
surdas.
XXII
Abri
a porta do porão e descobri
–
guardada entre restos de outras vidas –
a
minha, esmaecida pelo tempo,
usando
óculos e já sem memória
do
tempo em que fora
lírios
sorrindo
sua beleza pelo campo.
XXIII
Disse-me
adeus e eu nem tivera
a
chance de calar o grito
e
o pranto de alguém perdido.
Depois
veio o medo
e
a vergonha de ter-me
visto
ante o espelho
nu.
XXIV
Ao
ritmo surdo do tambor
cantou
as glórias do passado morto
ao
ponto mesmo de esquecer o dia
que
ia alto além dos
altos
muros.
E
os rouxinóis sequer
disseram-lhe
que a vida
jazia
deitada em sua porta
ainda.
XXV
As inconstâncias encontram-se
ao acaso perdidas entre as pedras,
como olhos-d’água.
E quem as colhe pode as modelar
nas mais diversas formas e contornos
para guardá-las feito
jóias raras dentro
das palavras.
XXVI
A
água jorrava aos borbotões
varrendo
o chão e a grama do jardim
e
enquanto ela caía
as
borboletas frias
guardavam
seu bailado
para
as tardes
secas.
XXVII
As
conchas, os cristais, os grãos de areia
são
lembranças de um tempo
quase
perdido
esquecido
entre o vento, o mar e a terra;
mas
estão sempre prontas a depor
a
sorte dos que querem
recriá-las
num mosaico
de
cores sem sentido.
XXVIII
Quando
a porta se abriu entraram todos
sem
pedir licença nem desculpas
e
tomaram entre os vivos
seu
lugar.
Só
se dispersaram quando a luz
varreu
as sombras sem
deixar-lhes
um lugar escuro
onde
abrigar-se dos olhos
malsinados.
XXIX
Sou
irmão dos sonhos e das sombras
colhendo
em cada coisa o seu enigma,
que
guardo na caixinha de
brinquedos.
Cresci
mas não perdi daquele tempo
a
delicadeza dos que amam
o
que é inútil.
XXX
Risco
maior do que crer em Deus
é
dar cria a um novo mito.
Se
o primeiro nos lança no infinito
de
um espaço a perder
de
vista,
O
segundo empurra-nos
para
dentro, ao centro
do
centro do nosso próprio
umbigo.
XXXI
Quando
eles chegaram eu nem estava,
pois
fora ao porto ver partir um sonho.
Levaram
todas as verdades
e
me deixaram apenas
uma
orquídea, que lhes parecera
nada.
Mas
foi com ela que refiz
o
meu jardim.
XXXII
E
mesmo assim saí a sua procura
pelas
ruas, entre casas e castelos;
fui
encontrá-la
já
completamente entregue
à
incerteza de seus
labirintos
nos subterrâneos
do
desejo.
XXXIII
Ouvi
muito bem o que diziam os pássaros,
embora
ninguém mais acreditasse,
tão
longe já se iam aqueles tempos...
mas
ouvi-os!
E
me falavam de notas
longas
e de pensamentos
que
cantam às soltas sobre
os
altos galhos.
XXXIV
O
mar, o vento ou a montanha
estão
aos olhos humanos como provas
do
infinito e do imenso implícitos
no
que finda.
A
experiência limite seria
ao
fim de tudo
beber
gole após gole
o
tempo que flui ininterrupto.
XXXV
A
janela estava aberta e de súbito
ele
entrou batendo em móveis e cortinas.
Seu
vôo reto, longo e plano
projetado
ao infinito
mostra
que nada sabe dos espaços
recortados
pelo homem.
À
noite, não pude mais
do
que fechar portas
e
janelas.
XXXVI
Ante
a janela, a cama desfeita
com
o mesmo lençol de vários dias.
O
quarto escuro
e
um abajur quebrado:
tão
miúda vida ensimesmada,
como
se não houvesse o além
da
janela e o outro
lado
da estrada.
XXXVII
Há
coisas que não se podem fazer
mas
que por isso mesmo inflamam o desejo:
como
a crescente vontade
–
que me invade –
de
comer um arco-íris.
Parente
deste, só outro
que
me fez coser em fios de ouro
esse
poema.
XXXVIII
A
borboleta é uma semente em pleno vôo
ou
é fruto, se se considera o casulo.
E
fruto solto no ar
só
se colhe com o olhar
porque
as mãos profanam menos
o
espaço do que
o
chão.
XXXIX
Azul, azul que não me espanta,
E canta como uma sereia de papel.
Ana Cristina César
Todas
as sereias são feitas de papel
e
com cabelos de grãos de areia
alvíssimos
e brilhantes como iluminuras
...mas...
ocorreu-me,
agora, que as sereias
de
Homero só podiam ser feitas de vento!
Talvez
por isso seu canto fosse
tão
profundamente
melancólico!
XL
Tanto
tempo vivi entre os homens
que
por pouco me faço mortal;
conheci-lhes
por isso as fraquezas
desvendei
mentiras
e
intuí mistérios
sob
sua pele em que se inscreve
o
tempo como em
livro
morto.
XLI
Quantas
vezes, meu amor, busquei teu nome
nos
mais insólitos cantos sem sentido:
entre
pedras, ao vento,
ou
sob as águas...
mas
encontrei-o em pleno
pensamento,
quando em sonho
lembrei
ter esquecido.
XLII
Colhi
teus gestos e bebi olhares
e,
ao fim desse sucesso,
percebi,
trêmulo, que não eras minha.
O
que fazer então
senão
lançar-me
a sorte de encontrar
a
morte em um jardim
florido.
XLIII
Estrídulo,
o grito soou muito além do nosso ouvido
e
houve quem o tomasse por louco
mas
está visto que não é nada disso:
o
homem tem no grito um acorde solto
como
o dobrar
do
sino, que ameaça a vida,
anunciando
a morte.
XLIV
Sabe,
José, há tantas portas para o infinito:
o
tempo, o vento, o mar e o espaço;
mas
é fato
que
também se encontram outras
que
são portas de vera
pois
só quando se entra
bem
ao fim do que é finito é que se vê
que
tudo que se adentra
–
é poço! –
não tem fundo.
XLV
Os
pássaros em cesto aos centos,
sem
asas e nem escape,
são
penas cobrindo ossos,
enquanto
o canto, um grito seco
como
estalo de gravetos.
–
Pudera! –
São
corpos sem peso ou densidade
Encerrados
no tempo e
fora
do espaço, sob a força e a lei
da
gravidade.
XLVI
Quem
é que nunca teve a pachorra
de
falar com flores
como
se trocassem hálitos e odores,
antes
de descobrir que o vento
tem
massa e, ao fim de tudo,
resseca
pele e pétalas
com
carícias leves?
XLVII
Minha
alegria
ancora
em todo canto
em
cada porto e canta enquanto
os
negros dias cegam de alegria
Minha
alegria
outros
que alegrem
e
a levem ao leve arcano do seu canto
Minha
alegria
canora
em todo pranto
XLVIII
E
eu estive sempre e o tempo todo escravo desta hora
pois quem passasse ali
veria
o
campo a perder de vista
e os
meus olhos perdidos entre os frisos
que
se desdobram e unem chão e céu no horizonte.
XLIX
Estavam
homens postos ao relento
em
quem se podia ler fino silêncio
como
se os rostos
livres
de tetos e abrigos
fossem
incólumes aos gestos
e
aos nomes.
L
Cinquenta
anos como séculos
passados
entre risos e tristezas
deram-lhe
à vida
o
colorido
do
coral malvistos em noite
escura.
LI
Estiveram
todo o tempo entre as ruínas
crianças
como anjos do passado
e
enquanto o sol se punha
deixaram-se
ficar jogados entre os detritos
a
noite traz trevas para todos
e
onde havia crianças
a
sombra cuidou de nos mostrar
só
réstias.
LII
Diversamente
acreditei na vida
Primeiro
um sonho embalado pela rede
depois
sede
ausência
verde
que,
como fruto, se amadurecesse
seria
como um instrumento
cuja
única corda se rompesse.
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